4.407 EUROS NÃO TÊM PREÇO
A
grave crise económica e financeira que deflagrou em 2008 acordou-nos para as
realidades que se passam à volta desse mundo escorregadio do dinheiro.
Ficámos
muito mais sensíveis à corrupção, à fraude económica, aos paraísos fiscais, à
arte de inventar formas de inventar riqueza, ao capitalismo desregulado.
Com
indignação e impotência assistimos ao desenrolar do caso BPN, ao desfile de
personagens impolutas pelo reino do desvio de imensos milhões de euros, às
primeiras páginas nos jornais de um caso que é mais que muitos casos.
Há
pouco tempo, o caso BES, cuja tinta ainda está fresca e o texto por acabar.
Desfilou outra passerelle de personagens exemplares, bem como das suas empresas
e entidades financeiras, falidas ou inexistentes. E nós? Burros diante de
palácios, ainda não percebemos bem o quanto os nossos impostos, as nossas
poupanças, os nossos desempregos ou as nossas crianças que não tomam pequeno almoço
ainda vão pagar mais para minimizar os milhares de milhões que esses seres
humanos, com um clique de tecla e um aperto de mão, conseguiram – vá lá –
desviar.
O
caso Vistos Gold é uma cereja – pequenina – em cima do bolo.
Afinal
o que é o Poder? A política têm-no cada vez menos e, graças a Deus, por
enquanto, as ditaduras estão em hibernação. As armas, se bem que ribombem à
volta da Europa, dormem cá dentro e não estamos sujeitos a regimes militares.
Os media, que se dizia serem o quarto poder, já devem ser o quinto.
Resta-nos
esse imenso polvo que é a grande finança, ditadura oligárquica constituída por
elites de bandidos que se digladiam em apertos de mão e se comem em almoços de
negócios, enquanto ajustam o próximo acto de pirataria intercontinental. E, com
isso, parte do resto do mundo sem
dinheiro para dar de comer aos filhos.
No
meio de tudo isto, a notícia do ano: três funcionários da Câmara Municipal da
Póvoa de Varzim devolveram um envelope com mais de quatro mil euros, encontrado
num centro de processamento de lixo. Trata-se de três homens que trabalham no
lixo, daqueles que vemos nos arredores da meia noite, agarrados às traseiras de
camiões mal cheirosos; ou que andam a escolher lixo para reciclagem como nós
escolhemos maçãs no supermercado. Desconheço o salário desses senhores, mas
tenho para mim que será inferior ao de alguns executivos da banca. 4.407 euros
é muito dinheiro para esses homens, e pôr um envelope no bolso, no meio de um
aterro sanitário, será um dos gestos mais inocentes que conheço. Devolveram.
Receberam como prémio um voto de louvor…
Há
um desequilíbrio descumunal de forças, quando se medem honestidade e
desonestidade, bondade e maldade humanas. É tudo uma questão de humanidade,
como terá pensado Jesus quando insinuou que quem é fiel no pouco é fiel no
muito. E não é a ocasião que faz o ladrão, porque não há ocasião comparável a
um envelope com 4.407 euros num aterro sanitário para quem deve ganhar pouco
mais de quinhentos. É uma questão de falência moral, de desmoronamento, lento e
indolor, daquilo a que antigamente chamávamos honra e hoje responsabilidade
humana. É também uma questão de bondade, tão contracorrente como um salmão a
subir as Cataratas do Niagara.
Tinha
para aí uns nove anos quando, com um amigo, encontrei uma nota de cem escudos.
Valia, valia! Discutimos. Ele queria que ficássemos com ela. Eu queria que a
déssemos a alguém adulto que a fizesse chegar ao dono. Discutimos tanto que eu
acabei a chorar e ganhei a discussão. Entregámos a nota a um adulto que garantiu
fazê-la chegar a quem provasse ser o dono. Umas semanas depois o meu colega, a
rir-se com desgosto: “sabes o que fulano fez? Ficou com os cem escudos”. Sem
voto de louvor nem vitória para a minha causa, restou-me a sensação de que o
mundo também se dividia em tolos e espertos, não só em bons e maus. Embora me
convença cada vez mais que o reino deste mundo é dos espertos – eventualmente
na mais execrável acepção desse termo – também não mudo: fosse hoje, voltaria a
devolver os cem escudos. É que há vitórias que não são do reino deste mundo.
Pe
Júlio Rocha
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