ISAÍAS 11, 9
Não sei se conhecem
a última anedota do Joãozinho…
Então
é assim: o Joãozinho é filho único. Debaixo da árvore de natal estão mais de
vinte ofertas. Todas para ele. Abre-as com comentários enfastiados perante a
ausência imperturbável dos pais, que o acompanham na tarefa de desimpedir a
sala dos papéis de oferta. Nessa mesma noite o Joãozinho sabe, pelos tios, que
o primo, o Chiquinho, teve uma consola de último grito com Ronaldo e Messi mais
que reais. O Joãozinho amua poderosamente. Renuncia, em sindical protesto, às
ofertas todas, fecha-se no quarto e não quer comer, decisão de que os pais o
tentam dissuadir, apesar de respeitarem democraticamente a liberdade do menino.
Quando reabre o comércio, os pais tomam, com tácita concordância, a decisão
mais lógica: compram-lhe a consola, coisa que o Joãozinho nem acha demais,
porque não fazem senão o seu dever. Mais uma família feliz no reino de absurdos
em que o mundo se transforma nesta quadra.
A
cada ano engrossa o número dos que dizem que o Natal é uma época triste. Esta
atitude estranha contradiz tudo aquilo que queremos que o Natal seja: festa da
família, da alegria, do convívio, da intimidade, da paz e da solidariedade com
os pobres. Há cabazes de Natal cada vez mais compostos, as pessoas visitam-se
reciprocamente, cantam-se canções enternecedoras, trocam-se presentes. Porque é
que, para cada vez mais gente, o Natal é uma quadra cada vez mais triste? Já
perguntei a várias pessoas e as respostas divergem bastante: para uns é a
revolta de um mundo mais consumista a cada ano que passa; para outros, a
nostalgia dos natais da infância, onde as prendas eram menos pomposas e o
ambiente mais caloroso; há ainda quem diga que o Natal é a festa da hipocrisia,
com cabazes e sorrisos e visitas e ofertas que não têm continuidade no resto
dos dias.
Tenho
para mim que a “tristeza” do Natal vem de zonas mais profundas. É que esta
quadra mede, com uma exactidão desconcertante, a distância que nos separa de
nós mesmos. Quando éramos crianças tínhamos a certeza de uma coisa: íamos ser
pessoas muito melhores do que realmente acabámos por nos tornar. Esse pedaço de
gente que somos agora não corresponde aos sonhos da criança que ainda habita
dentro de nós. E é no Natal que o eu que somos e o eu que gostaríamos de ser se
encontram. Ou reencontram. Fazemos compras, exaurimos a nossa paciência e
criatividade em ofertas, enchemos a casa de luzes e a mesa de acepipes. E a
alma suficientemente vazia para não termos boas recordações de mais um Natal
como todos os outros. E os contos de natal, as histórias cheias de lições
morais, onde as crianças aprendem alguns dos mais belos valores da humanidade,
incomodam a nossa pacata separação de nós mesmos.
Para
mim, a história mais bela de Natal ainda é aquela do nascimento de Jesus.
Contrariando todas as expectativas de Israel, o Messias viria a nascer na mais
eloquente ausência de bens e confortos materiais, num lugar esquecido da
periferia do mundo inteiro. Deus fez-se Homem. E sem rodeios, sem acessórios,
sem adjectivos, sem títulos: só Homem. Uma lição moral desta história: quanto
mais rodeios, acessórios, adjectivos ou títulos acrescentamos, menos humanos
vamos sendo. O surto de ofertas e pomposidades natalícias talvez disfarce o
défice de humano que tenhamos dentro de nós. E se disfarça, disfarça bem.
Amortece o impacto do encontro entre nós e nós mesmos. Mas depois aparecem os
Joãozinhos da anedota que contei no princípio deste arrazoado todo.
Quando,
em casa, eu desatava numa conversa mais zangada ou provocadora, minha mãe às
vezes dizia: “Ah Júlio, reza!” É isso mesmo: rezar. Rezar-me por esse Natal
afora, rezar-me a Deus, sem rodeios, nem acessórios, nem adjectivos, nem
títulos. Rezar-me como um filho, quando criança, fala com o pai. Um pai que não
morre, porque um pai só morre se não puder fazer outra coisa pelos filhos. Ou
seja: um pai nunca morre.
Que
este Natal vos seja santo.
Pe
Júlio Rocha
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