DEUS FALA


"Chegava a casa, após ganhar 20 milhões. Porque é que não estava feliz? Alguma coisa estava errada"



Marcos Borga

Leia ou releia a entrevista a João Ermida, escritor e ex-banqueiro

Jornalista

Filho de uma família abastada do Porto, João Ermida, hoje com 52 anos, deixou em 2003 um lugar de sonho na banca – o de responsável global dos Mercados Financeiros, no Santander –, quando as práticas já não lhe agradavam e, ao que conta, após pedir ajuda a Deus, com quem comunicou numa igreja de Madrid. Desde então, escreve livros de espiritualidade – como o que agora publica, uma novela de louvor a Nossa Senhora, intitulada Vem a Fátima Falar Comigo (Oficina do Livro, 109 págs., €13,90). Também se dedica a trabalho social, mas continua na área financeira, enquanto consultor independente de investimentos. Nada a fazer, está-lhe no sangue.
Quando entrou no sistema financeiro?
Comecei em 1986, tinha 21 anos. Iniciei-me como corretor de Bolsa, a ajudar um primo meu. Na altura ainda havia títulos e outras coisas complicadas, e as sessões duravam dez horas.
Era uma ambição sua?
Sim. E tinha também a ver com uma certa ânsia minha de entender o funcionamento do sistema financeiro e do mundo. Já interligava o que levaria o mundo a funcionar, o que mais tarde se confirmou de forma exacerbada. Ou seja, a finança a dominar o mundo como hoje o conhecemos.
Capturando o poder político…
Isso. Aliás, o meu livro O Dono do Mundo é uma sátira à classe política, que perdeu por completo o controlo da situação. O domínio claro é de quem tem o mundo financeiro na mão.
Há de saber do que fala – trabalhou muito tempo no sistema financeiro…
Quase 20 anos, até 2003.
E gostou?
Adorei, até 2000, 2001, quando percebi que os valores estavam radicalmente a mudar. Antes havia objetivos de ganhos razoáveis, lógicos e expectáveis, mas a partir daquela altura comecei a observar que as regras e os princípios já não eram muito importantes.
Cometeu o pecado da gula?
Sim, mas não contra os interesses dos clientes. De certa forma, era afortunado, embora a minha área fosse a de tomada de risco – a pior que há. Tanto se pode ganhar 50 milhões num dia como perder cem no outro. Mas não tem muito a ver com negócios de clientes em si.
Como chegou tão alto, sem ter sequer uma licenciatura?
Nunca tinha marcado objetivos na minha vida, para onde queria ir. Surgiram-me essas oportunidades e fui aproveitando. E isso com a criação de boas equipas, constituídas por pessoas de quem gostava. Tinha a felicidade de fazer aquilo de que gostava, acompanhado por gente que apreciava.
Quando começou o desencanto?
No momento em que me coloquei a questão sobre o que estava a mudar no mundo em que me movia, a ponto de já não haver identificação.
Mas ganhou muito dinheiro...
Sim, mas foi todo declarado e paguei muitos impostos também [risos].
Olhando para trás, considera hoje que tomou decisões contrárias aos seus valores?
Não. O que achei foi que o sistema financeiro estava a querer simplificar os métodos para passar a ser algo de parecido com as empresas industriais. Ou melhor, supermercados. Produtos, tudo muito fácil e de venda rápida, pouco elaborado. Um serviço não muito claro.
Não muito claro?
Não muito explícito naquilo que se estava a querer aconselhar ou vender aos clientes. O que veio a desembocar na crise de 2008 foi sendo trabalhado antecipadamente, as coisas não aconteceram por acaso. Em concreto, a ligeireza com que as pessoas começaram a tratar o tema de conseguir ganhar mais dinheiro, tendo em conta que as taxas de juro haviam baixado muito em relação ao passado. Era necessário encontrar novas formas de gerar lucros.
Chamavam-lhe inovação financeira...
Isso. E essa inovação financeira começa a aumentar tão drasticamente que, às tantas, nem os próprios funcionários bancários sabiam o que estavam a fazer, quanto mais os clientes. Comecei a perceber que o caminho para onde íamos não era o correto. Que mais cedo ou mais tarde rebentava uma crise similar à Grande Depressão dos anos 1930.
Entrou num estado de angústia?
Sou uma pessoa muito intuitiva. Racionalizar, sim, mas considero que as pessoas devem seguir também a sua intuição – o que tentei sempre fazer ao máximo. Sente-se as coisas de uma forma diferente, elas vão vindo, aparecendo. Por exemplo, não racionalizo muito os meus livros. Sinto que é aquele livro que tenho de escrever. Quando me sento ao computador, o livro vai saindo. Não tento racionalizar o princípio, o meio, o final.
O que intuiu naquela altura?
Por exemplo: chegava a casa, após ganhar 20 milhões. Porque é que não estava feliz? Porque é que não me apetecia ir no dia seguinte trabalhar? Alguma coisa estava errada. Não era pelas dificuldades, um tema que não me assusta, pelo contrário. Prefiro os tempos difíceis aos de bonança, desafiam muito mais. Mas o que não me estava a acontecer de bem era ter dias ótimos, em que nos fartávamos de ganhar dinheiro, e eu considerava que o modelo que propiciava esses lucros abalava as minhas convicções. E isso foi-me retirando a vontade de estar nele. Ao cabo de dois anos, em 2003, tomei a decisão de sair.
Lembra-se do dia exato?
Foi a 22 ou 23 de maio, em Madrid, onde vivia e trabalhava. Nesse dia desci uma rua para apanhar um táxi, mas de repente decidi entrar antes numa igreja que havia ali perto e sentar-me lá. No processo em que estava, entre a racionalização e a minha intuição, pedi a Deus que me levasse a tomar a melhor decisão.
Sentiu que falou com Deus?
Sim.
E qual foi o diálogo?
Foi muito simples. Resumiu-se a um pedido meu para que algo acontecesse e que me fizesse tomar uma decisão para terminar com o sofrimento por que estava a passar.
Obteve uma resposta?
Veio no dia a seguir. As respostas de Deus chegam por acontecimentos.
Mas ouviu uma voz?
Não…
O que sucedeu então?
Fui confrontado com uma situação profissional que me fez concluir que não valia a pena continuar. Foi-nos pedido que, em Madrid, despedíssemos mais dez pessoas. Já vínhamos de uma fusão em que passámos de 330 para 210 pessoas, precisávamos de estabilidade. E apareceu esse número “mágico” de 200. Não tinha nenhum sentido.
Porquê?
Irritou-me nesse processo a insistência no tal número “mágico”, quando precisávamos das 210 pessoas que tínhamos. Imaginemos que o total de salários em causa ascendia a 30 milhões de euros por ano e que era necessário baixar para 29. Podia então cortar-se nos bónus, nos prémios… Era possível fazer isso de várias formas, mantendo-se a equipa. Do que não precisávamos era de mais ruído.
O que fez?
Dirigi-me ao diretor-geral do banco na minha área – eu era diretor--geral adjunto – e disse-lhe: “Vamos terminar com isto. Vou facilitar-lhe a vida. Entre salários e bónus, ganho 2,5 milhões de euros por ano. Eu saio e, com essa poupança, não há necessidade de despedir ninguém. Já estou desencantado com tudo isto, deixei de acreditar, o que torna a situação muito simples. Não exijo nenhuma indemnização, não reivindico absolutamente nada – apesar de em maio já ter resultados extraordinários para os meus objetivos do ano. Só lhe vou pedir que me pague o salário deste mês e as férias. Acho que fica resolvido o seu problema das dez pessoas.” Deus respondeu--me desta maneira. Criou-me um problema no dia a seguir, ao qual respondi daquela forma e, com isso, libertei-me do que andava a sofrer.
Provém de uma família religiosa?
O meu pai não era definitivamente crente. A minha mãe era. Íamos de vez em quando à missa, ao domingo. Não temos padres na família [risos].
Depois dessa decisão, passou a viver de quê?
Das minhas poupanças, e de trabalhos na área financeira de consultadoria independente, que ainda hoje faço junto de algumas pessoas e famílias, que me pedem essa ajuda nos seus investimentos. E ao mesmo tempo escrevo livros.
Faz trabalho solidário?
Sim, e dá-me grande prazer. Trabalho junto de duas organizações. Estou na vice-presidência do Centro Social Paroquial da Ajuda, em Lisboa, que tem um lar, uma creche, serviço de apoio domiciliário, centro de dia. É uma função que me obriga a lá ir todas as semanas, para auxiliar na gestão e supervisão financeira. Depois ajudo uma ONG, a Pressley Ridge, que trabalha com crianças em risco de famílias desintegradas. Aqui procuro arranjar meios financeiros para sustentar o funcionamento da associação.
Até que ponto a sua vida mudou?
Mudou completamente. Deus fecha--nos pequenas ou grandes portas, mas abre-nos janelas importantíssimas. Nunca pedi para as coisas me acontecerem. Elas vão acontecendo. É claro que tive de fazer sacrifícios pessoais. Por exemplo, tinha um Porsche e vendi-o. Hoje tenho um carro de 2005 e outro de 1999.
A sua mulher e os dois filhos que têm acompanham-no na religiosidade?
Respeitam-na. Mas não sou pessoa de imposições. É um aspeto da vida que é de liberdade pessoal total. Cada um tem a sua forma de estar no mundo e acredita no que quer acreditar.
E como lida com amigos ateus?
Com um princípio básico: a minha religiosidade é um tema sobre o qual nunca discuto.
De que forma nasce a sua devoção a Nossa Senhora?
Fui a Fátima em pequeno e portei--me muito mal. Tinha 14 anos e fui mandado para o autocarro. Estava na altura num colégio de freiras, onde a minha mãe me tinha posto, e o que queria mesmo era andar atrás das raparigas. Fui recambiado para a carrinha, eu e outros, e pouco desfrutei de Fátima dessa primeira vez. Até que há cerca de sete anos comecei a fazer regularmente retiros lá.
Porquê?
Segui a minha intuição. Já fiz retiros em vários sítios, mas aqueles em que tenho maior prazer e vontade de estar são em Fátima.
E consegue comunicar com Nossa Senhora?
Sim. Mas isso consigo fazer todos os dias. No retiro há uma entrega e um despojamento maiores, que trazem paz, tranquilidade e uma energia nova.
A quem lhe diga que esses podem ser episódios de delírio momentâneo, o que responde?
Eu não ouço Nossa Senhora. Comunico com ela.
Mas recebe respostas?
Recebo-as depois através de acontecimentos que me vão ocorrendo no dia a dia e que se relacionam com o que comuniquei a Nossa Senhora. Nunca tive visões nem aparições.
Considera que já ganhou o seu lugar no Céu?
Não. Sou um pecador diário [risos]. Vai ser complicado, terei de trabalhar todos os dias para isso. Um dos meus princípios é o de que as contas finais da vida se fazem quando ela termina. E, se Deus quiser, ainda faltam muitos anos para a minha terminar. Há muita coisa a fazer para, quando me encontrar com Deus, Ele me dizer se está contente comigo ou se fiquei aquém do que esperou de mim.
Mas deseja alcançar a eternidade?
Sim, desejo a eternidade. Acho que é algo a que qualquer pessoa devia aspirar. O existir, morrer e desaparecer não faz sentido numa máquina tão perfeita como aquela que nós somos.
(Entrevista publicada na VISÃO 1262, de 11 de maio de 2017)

Povoação, segunda-feira, 23 de abril de 2018.

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