FIÉIS DEFUNTOS: ORIGEM E ESPIRITUALIDADE DA FÉ NA VIDA ETERNA


«Que ninguém tenha medo de se encontrar convosco, depois da peregrinação terrena, na esperança de ser recebido nos braços da vossa misericórdia infinita. Que a irmã morte corporal nos encontre vigilantes na oração e repletos de todo o bem praticado ao longo da nossa existência, breve ou longa que tenha sido. Senhor, nada nos afaste de Vós nesta terra, mas tudo e todos nos sustentem no desejo abrasador de descansar tranquila e eternamente em Vós» (P. Antonio Rungi).

Em 998, Santo Odilo, abade de Cluny, solicita a todos os mosteiros dependentes da sua abadia para celebrarem um ofício no dia seguinte à solenidade de Todos os Santos, pela «memória de todos aqueles que repousam em Cristo». A prática estender-se-á aos outros mosteiros e, depois, às paróquias servidas pelo clero secular.

No século XIII-XIV, Roma inscreve a data no calendário da Igreja universal. Desta forma, todos os membros defuntos da comunhão dos santos são evocados sucessivamente: aqueles que chegaram à glória do céu no primeiro de novembro, os outros no dia seguinte.

No fim do século XV, os padres dominicanos espanhóis estabelecem o costume de celebrar três missas a 2 de novembro. O papa Bento XIV concede este privilégio aos sacerdotes de Portugal, Espanha e América Latina. Em 1915, Bento XV estende-o a todos os padres. A tradição prosseguiu até recentemente.

Desde os primeiros tempos do cristianismo fundou-se a convicção de que os vivos devem rezar pelos mortos. No momento de morrer, Santa Mónica, mãe de Santo Agostinho, pediu ao seu filho para se recordar dela «no altar do Senhor, onde quer que estiveres». Durante a Alta Idade Média, celebra-se o Ofício dos Defuntos no aniversário do falecimento da pessoa.

Um vasto movimento de solidariedade espiritual

A 2 de novembro, os cristãos são convidados a participar, se possível participando na missa, neste vasto movimento de solidariedade espiritual. As multidões que comparecem nos cemitérios a 1 e 2 de novembro não são estranhas à mensagem de esperança da Igreja, apesar da constatação de que a solenidade de Todos os Santos muitas vezes se restrinja à triste evocação das pessoas desaparecidas.

Pensar e rezar por aqueles que amámos (e amamos) faz parte da fé cristã. Mas não esqueçamos que também lhes podemos pedir para rezarem por nós, para se associarem às dificuldades da nossa vida e, chegada a hora, para nos ajudar a fazer a grande passagem que eles já atravessaram. Viver na memória dos nossos desaparecidos não deve ser considerado como evocação mortífera e deprimente. É, ao contrário, um verdadeiro testemunho de fé na ressurreição e na vida eterna.

Rezar pelos defuntos, tradição antiquíssima de esperança na vida

No século VII, oferecer uma missa por um defunto torna-se uma prática corrente, ao mesmo tempo que se instaurava a tradição de celebrar a Eucaristia todos os dias.

Este hábito, que rapidamente se expande, dará lugar a abusos ligados à multiplicação do número de missas diárias, com as ofertas ou honorários que lhes estavam associadas.

No século XVI, a Reforma protestante coloca em questão a eficácia da oração pelos mortos. Os reformadores erguem-se contra as práticas ligadas a essa tradição, como as indulgências e as missas pelos defuntos.

O concílio de Trento defenderá o ensinamento e as práticas originais da Igreja mas condenará os abusos. A preocupação relativa ao destino dos defuntos do purgatório não cessará na época moderna. O concílio Vaticano II retomou o ensinamento tradicional, reafirmando a importância da oração pelos defuntos, tendo novamente advertido contra os abusos e os excessos.

Atualmente, os defuntos são nomeados na missa, mas sem que seja utilizado um formulário específico. A crença num processo de purificação após a morte não parou de se aprofundar, deixando de se concentrar num agente físico purificador ou punitivo, como o fogo, nem num lugar material ou um intervalo de tempo.

Além da nomeação, a oração cristã na missa pelos defuntos ocorre nas orações eucarísticas: «Concedei-lhes, Senhor, o lugar da consolação, da luz e da paz»; «admiti-os na luz da vossa presença»; «acolhei-os com bondade no vosso reino, onde também nós esperamos ser recebidos, para vivermos com eles eternamente na vossa glória»; «lembrai-vos também dos nossos irmãos que adormeceram na paz de Cristo e de todos os defuntos cuja fé só Vós conhecestes».  Na oração de Vésperas da Liturgia das Horas também está prevista a prece pelos defuntos.

As preces pelos defuntos evocam as almas no mistério da comunhão dos santos e, portanto, na sua relação com os vivos. Elas são igualmente proferidas na esperança de melhorar a condição dos mortos, para o caso de ainda se encontrarem em processo de purificação.

«A tradição da Igreja sempre exortou a rezar pelos finados, de maneira especial oferecendo por eles a celebração eucarística: esta é a melhor ajuda espiritual que nós podemos oferecer pelas suas almas, particularmente por aquelas mais abandonadas», lembrou o papa Francisco.

Para Francisco, a comemoração de todos os fiéis defuntos oferece uma dupla evocação: «A memória do passado, dos nossos entes queridos que já se foram; e a memória do porvir, do caminho que nós havemos de percorrer. Com a certeza, a segurança; aquela certeza que saiu dos lábios de Jesus: “Eu ressuscitá-lo-ei no último dia”».

Com efeito, «a comemoração dos finados, o cuidado pelos sepulcros e os sufrágios são testemunho de esperança confiante, radicada na certeza de que a morte não é a última palavra sobre o destino humano, porque o homem está destinado a uma vida sem limites, que encontra a sua raiz e o seu cumprimento em Deus».

Greg Dues / Croire, Rui Jorge Martins / SNPC

Imagem: "Ressurreição" (det.) | Alma Thomas | 1966

Publicado em 02.11.2018

Povoação, terça-feira, 6 de novembro de 2018.

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