SERVIR E SERVIR OUTRA VEZ
Há
alguns dias atrás numa conversa de família alguém começou a falar de empregadas
domésticas e de como elas cumprem ou não cumprem o que lhes é pedido e qual a
relação que têm na casa onde servem. E, pasme-se alguém, porque a conversa para
aí derivou, ficou escandalizado porque a empregada, na hora da refeição,
sentava-se à mesa com os patrões. Durante uns segundos não queria acreditar em
tamanho espanto. Aliás, em bom rigor, nem sei porque é que aquilo veio à baila
e era importante ser sublinhado.
Por
momentos, confesso, pensei que tinha regressado ao passado mas depois
refletindo um pouco melhor e porque estava entre crentes, e a fé não pode ser
uma abstração que nos impele só à prática de uma ritualidade estabelecida,
senti-me dentro daquela história, e desafiei-me a mim própria não a julgar mas
a compreender.
No
Evangelho de Lucas (Lc 17,7-10) há uma passagem a propósito desta relação entre
o senhor e o servo: “Quem de vós, tendo um servo a lavrar ou a guardar gado,
lhe dirá quando ele volta do campo: ‘Vem depressa sentar-te à mesa’? Não lhe
dirá antes: ‘Prepara-me o jantar e cinge-te para me servires, até que eu tenha
comido e bebido. Depois comerás e beberás tu’.
Terá
de agradecer ao servo por lhe ter feito o que mandou? Assim também vós, quando
tiverdes feito tudo o que vos foi ordenado, dizei: ‘Somos inúteis servos:
fizemos o que devíamos fazer’”.
Imagino
que muitos de nós, ainda hoje, continuamos a saltar esta página, como saltamos
outras tantas que nos falam de humildade, de respeito e de serviço, como se não
fizéssemos parte desta história. É um dos grandes perigos da nossa vida:
habituarmo-nos a ela sem nos questionarmos, perdendo até a capacidade de nos
interpelarmos, e aí a vida toma conta de nós, e começamos a fazer coisas que
nada têm a ver com aquilo em que dizemos acreditar. Às vezes basta
questionarmos os nossos gestos para perceber que, à custa de os repetirmos, se
tornam tiques e manias com imenso impacto nas nossas relações.
E
comecei a pensar se esta minha familiar se escandalizou e também tem uma
empregada doméstica que come na cozinha, naturalmente, por acaso conhece a
pessoa que trabalha lá em casa; se sabe dos seus problemas, das suas
inquietações, da sua satisfação ou insatisfação para além da relação laboral
que têm, em que uma manda e outra obedece.
O
sentar ou não sentar à mesma mesa com a empregada doméstica é apenas a metáfora
das relações que temos nas nossas vidas e da forma como as deixamos crescer ou
atrofiar; da forma como nos implicamos e atendemos aos outros.
Em
São Miguel, sobretudo nas zonas mais rurais, há uma expressão popular que gosto
muito e que se aplica bem a esta situação: “sei quem é mas não lhe conheço”. É
isto que acontece: vivemos debaixo do mesmo teto, partilhamos espaço mas não
partilhamos vida. E por isso uns comem na cozinha e outros na sala. No final
cada um vai à sua vida, ciente de que cumpriu o seu papel.
Será
isto que a vida nos pede? Se não somos capazes de partilhar a mesa, por esta ou
por aquela razão, como seremos capazes de partilhar o coração? Quantos lugares
novos abrimos nós para acolher, pensar e interpretar os outros?
Por
vezes sinto que somos cada vez mais cristãos para nós mesmos, servindo-nos
somente a nós e por isso, somos mais tristes, mais insatisfeitos, mais
revoltados só porque o que realmente interessa ficou sabe-se lá onde, perdido
numa missa de um domingo qualquer.
Jesus
apresentou-nos um Deus frágil, que se anuncia no amor e na misericórdia e não
na força nem no poder. Que sentido faz a empregada comer na cozinha?
Por Carmo Rodeia
Povoação,
terça-feira, 13 de novembro de 2018.
Comentários
Enviar um comentário