Breve História
Como narra Gaspar
Frutuoso, repetido pelos cronistas posteriores, o primeiro lugar a acolher os
que então a São Miguel chegaram foi o da Povoação Velha. Aqui desembarcaram os
primeiros povoadores, aqui se ergueu o primeiro templo e se celebrou a primeira
missa. Mas cedo os povoadores daqui continuaram a explorar o litoral sul da
ilha, ocupando os sítios de melhores encostas, de mais brigadas enseadas ou de
mais amplas plataformas.
Embora primeira na
descoberta e no povoamento, e apesar de favorecida pela fortuna da sua
antiguidade “a respeito das outras povoações de toda a ilha que depois dela se
fizeram”, a Povoação Velha não conseguiu impor-se ao longo da história como
espaço socialmente construído, como o prova o facto de ser a mais jovem de
todas as vilas da ilha.
Vila Franca teve melhor
sorte, pois “alguns anos depois do descobrimento e povoamento desta ilha, era
Vila somente Vila Franca do Campo e a cabeça de toda ela…”. Ela era senhora e
rainha com direito à “vassalagem” de todo o resto da ilha (1).
Como deixa transparente a
documentação consultada, a organização eclesiástica do território obedeceu
praticamente à lógica da organização administrativa do mesmo. Assim: “até 1698
havia uma só ouvidoria eclesiástica em são Miguel”. Nesta data, o bispo D.
António Vieira Leitão dividiu-a em três – uma em Ponta Delgada, outra em Vila
Franca e a terceira na Ribeira Grande” (2). Há que defenda qua a da Ribeira
Grande foi criada aos 14 de Fevereiro de 1590 pelo bispo de então D. Manuel de
Gouveia. Mas esta afirmação parece ser menos exata, pois “dum atestado passado
pelo licenciado Ascêncio Gonçalves, ouvidor geral em São Miguel no tempo deste
prelado, se mostra que nos anos de 1591 e 1592 havia ali uma só ouvidoria e o
mesmo se confirma pelas estatísticas da ilha relativas aos anos 1640 a 1646”
(3). Assim sendo, enquanto não surgirem documentos mais precisos, podemos
afirmar que até 1698 houve uma só ouvidoria em toda a ilha.
Uma quarta ouvidoria - a de Nordeste – foi criada a 15 de Janeiro
de 1895, desmembrada da de Vila Franca. As paróquias da actual ouvidoria da
Povoação, continuaram a pertencer à de Vila Franca, exceptuando a de Furnas:
“Até 1873, apenas a
freguesia de Sant’Ana do lugar das Furnas, que faz parte do concelho da
Povoação, na ilha de São Miguel, desta nossa diocese, pertence à Ouvidoria da
Ribeira Grande, e que todo aquele Concelho, excepto a dita freguesia faz parte
da Ouvidoria eclesiástica de Vila Franca do Campo, da mesma ilha, o que causa
grave embaraço ao serviço eclesiástico, principalmente com relação folhas dos
Rd.os Párocos e mais empregados eclesiásticos, as quais são organizadas por
Concelhos, que convém não pertencerem a mais de uma Ouvidoria. […]; e
constando-nos igualmente que a dita freguesia de Sant’Ana do lugar de Vale das
Furnas fica muito mais próxima de Vila Franca do que da Vila da Ribeira Grande,
e que portanto mais convém aos fiéis da mesma freguesia pertencerem àquela do
que a esta Ouvidoria: Ordenamos que daqui em diante fique fazendo parte a dita
freguesia de Sant’Ana do Vale das Furnas da Ouvidoria de Vila Franca, e não da
Ribeira Grande, para todos os efeitos […]. Dada em este nosso Paço Episcopal
d’Angra de Heroísmo, aos 7 de Outubro de 1873. Ass. João Maria, Bispo d’Angra”
(4).
No início do século XX, em
1906, a Câmara Municipal da Povoação – já depois do julgado Ordinário da
Povoação ter sido desanexado do de Nordeste e do Concelho ter sido elevado à
categoria de Comarca – resolveu dirigir-se ao Bispo de então, D. José Correia
Cardoso Monteiro (1905 – 1910), insistindo sobre “a necessidade ingente que há
da criação duma Ouvidoria Eclesiástica com sede na dita Vila, pretensão esta
que se justifica com as razões que mui reverente e respeitosamente passa a
expor” e das quais salientamos (5):
*O Concelho da Povoação
era composto por quatro freguesias (Água Retorta, Faial da Terra, Furnas e
Povoação), com uma população de 11.145 pessoas segundo o censo de 1900.
*Era grande a distância
que era necessário percorrer para chegar a Vila Franca. Água Retorta, por
exemplo, ficava a 45 Km ou 9 légua daquela Vila.
*A administração da
Justiça eclesiástica a uma distância destas era sobremaneira “vexatória e
incómoda” para os respetivos povos, porque os obrigava a grandes sacrifícios, a
caminhadas excessivas, e perda de tempo, a maiores despesas e a transportes
incalculáveis, especialmente nos processos matrimoniais.
*O Governo de então já se
tinha dado conta destes incómodos e, a partir de 12 de Novembro de 1875, criou
uma Comarca Judicial com sede na Vila da Povoação, desanexando da de Vila
Franca.
*Tal excepção, na opinião
da Câmara Municipal da Povoação, devia acabar, porque as razões que
determinaram a desanexação quanto à parte civil são as mesmas que devem imperar
para a desanexação da parte eclesiástica.
Assim, é lógica a
conclusão dos suplicantes, ou seja, é de reconhecida e grande utilidade para a
população do Concelho uma Ouvidoria Eclesiástica com sede na Vila da Povoação.
Tal circunscrição eclesiástica compreenderia as quatro freguesias do Concelho –
Nossa Senhora da Penha de França d’Água Retorta, Nossa Senhora da Graça do
Faial da Terra, Sant’Ana de Furnas e Nossa Senhora Mãe de Deus de Povoação –
bem como os Curatos sufragâneos de São Paulo do lugar da Ribeira Quente, Santa
Bárbara da Lomba do Carro, Rosário, da mesma Vila e Nossa Senhora dos Remédios,
da Lomba do Loução.
A Câmara Municipal da
Povoação, sob a presidência do Ver. Padre Manuel Moniz de Sousa, ao fazer esta
exposição, confiava “no amor e zelo inexcedíveis” do Prelado diocesano para com
esta população de que era “ínclito Pastor e Pai espiritual”.
Apesar de todas as razões
explanadas nesta fundamentada representação da sua Câmara Municipal, a Povoação
continuou durante mais alguns anos sufragânea da Matriz de Vila Franca do campo.
Em 1916, a luz do sol
raiou no rosto desta “avó” de todas as outras povoações da ilha. De facto, aos
24 de Abril daquele ano, por Provisão do Bispo de Angra, D. Manuel Damasceno da
Costa, foram elevadas a sete as Ouvidorias de São Miguel. Destas, a 3ª – a da
Povoação – era composta por Ribeira Quente, Nossa Senhora Mãe de Deus, Lomba do
Loução, Faial da Terra, Água Retorta. Só agora, passados tantos anos, a
Povoação Velha atingia a sua total e completa emancipação.
Eis o teor da Provisão que
nos emancipou eclesiasticamente:
“Com o fim de podermos com maior facilidade e eficácia exercer a nossa
missão pastoral a vasta ilha de São Miguel por intermédio dos nossos
representantes, os muito rvd.os Ouvidores, que melhor poderão também cumprir os
graves encargos, que lhes estão inerentes; e ainda porque mais favorecidos
ficam o rvd.º Clero e fiéis em todos os serviços, que daquelas autoridades
dependem; havemos por bem elevar a sete as Ouvidorias daquela ilha, que ficarão
formadas pelas paróquias e curatos constantes do seguinte mapa: […]” (6).
Logo no dia seguinte, 25
de Abril de 1916, foi passada provisão de Ouvidor ao Ver.º Ernesto jacinto
Raposo, para a 3ª ouvidoria da ilha de são Miguel (7).
“D. Manuel Damasceno da
Costa, por Mercê de Deus e da Santa Sé Apostólica Bispo de Angra e ilhas dos
Açores, etc…
Fazemos saber que
devidamente informado da ilustração, Zelo e outras qualidades do Muito
Reverendo Ernesto Jacinto Raposo, de que tem dado sobejas provas no desempenho
das funções do seu sagrado Ministério, havemos por bem nomeá-lo Ouvidor do
terceiro distrito eclesiástico da Ilha de são Miguel.
A este testemunho da nossa
estima e consideração esperamos que corresponderá sempre em todos os serviços
inerentes ao importante cargo que lhe confiamos, com a mais leal e sincera
cooperação exigida pelos elevados interesses da Santa Igreja e da querida
diocese.
E ordenamos que com esta
Provisão se apresente ao Muito Reverendo Ouvidor do Distrito Eclesiástico mais
próximo para lhe aceitar a profissão de fé e em suas mãos prestar o juramento
do estilo, de que se lavará o competente auto a fim de poder entrar em
exercício.
Dada na Nossa Residência
de Angra do Heroísmo, aos 25 de Abril de 1916” (8).
Além do Ouvidor, Pároco da
Matriz da Povoação, constituíam a Equipa sacerdotal da recém criada Ouvidoria
os seguintes sacerdotes:
Pe. Dionísio Moniz de
Almeida (Povoação)
Padre Manuel José Teixeira
(Lomba do Loução)
Padre Manuel de Sousa
Resendes (Água Retorta)
Padre Urbano Pacheco de
Melo (Faial da Terra)
Padre Ângelo de Amaral (Ribeira
Quente)
Padre José Jacinto Botelho
(Furnas) (9).
Dissemos que o
entendimento da realidade do espaço passa pelo estudo e análise das relações
sociais que o criam e organizam. Ao terminar este breve apontamento, queremos
lembrar aos mais novos que é importante mergulhar na história, pois, o espaço
que habitamos, tem marcas que convém convocar para o presente sempre que o
futuro está nos nossos horizontes. Ele reflete, sem dúvida, os caminhos
percorridos pelas gerações que nos precederam. Normalmente, traduz o registo de
muitos movimentos, de aventuras, de conquistas, de desejos, de paixões, de
decepções, de glória e de sofrimento. É algo do que somos, como fruto da
construção histórica de gerações social e espiritualmente qualificadas. Mais do
que espaço físico, o território como construção social, constitui a geografia
dos afectos e da memória de emoções partidas da alma e da razão, sem a qual é
difícil, se não mesmo impossível, viver e sobreviver como povo e rasgar novos
caminhos de futuro. O território não é apenas uma abstração científica. É o
registo de todas as memórias. Das memórias das conquistas e do que ficou por
concretizar. E nós somos os continuadores do que falta conquistar.
Octávio de Medeiros
Transcrito por: Pedro
Damião Ponte – Livro – Povoação
1) Saudades
da Terra, Livro IV, vol.I, p. 18…………..............Gaspar Frutuoso
2) Obra
cit., p.22……………………………………………………...............Gaspar Frutuoso
3) Obra
Cit., vol. II, p. 19………………………………………..............Gaspar Frutuoso
4) Idem,
ibidem, p. 27.
5) Crónicas
da Província de São João Evangelista das Ilhas dos Açores, vol. II, p. 240………………..........................Frei
Agostinho de Monte Alverne
6) In
Arquivo dos Açores, vol. XII, p. 440…………….............Ernesto do Canto
7) As
Ilhas Desconhecidas, p. 137……………………………….............Raul Brandão
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